quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Entrei sozinho na favela sem dar satisfação. É a UPP dos Macacos


Jorge Antônio Barros
Rio de Janeiro

Jorge Antônio Barros é jornalista e escreve sobre criminalidade e segurança pública desde 1981. É editor-adjunto da editoria que trata de assuntos relativos ao Rio do jornal O Globo. É autor do blog "Repórter de Crime", no Globo Online.


A primeira vez que subi um morro foi o dos Telégrafos, em São Cristóvão, pelas mãos de Zefinha, a empregada lá de casa. Eu não tinha mais do que cinco anos de idade. E um detalhe me marcou muito: como as pessoas conseguiam viver em condições precárias em que predomina um cheiro forte de esgoto in natura predominava. Nunca mais esqueci aquele cheiro de vala.


Mais tarde, já na faculdade, me inscrevi no Projeto Rondon e onde fui parar? Num trabalho de pesquisa na Favela da Rocinha, feito pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Ainda existe isso? Já naquela época era marcante o medo da remoção, os moradores perguntando o tempo todo se a pesquisa era para que eles entregassem suas casas construídas com muito sacrifício. "Não temos para onde ir; não dá para voltar pro Nordeste", era o que eu mais ouvia, calça jeans e camiseta branca com o logotipo do Rondon.

Repórter de cidade do "Jornal do Brasil", nos anos 80, vi e conversei pela primeira vez com um bandido armado nas palafitas da Maré. Eram os "xerifes" - traficantes e assaltantes - com quem o extinto BNH teve que negociar para implantar o Projeto Rio - a urbanização das favelas da Maré - mais uma das portentosas obras do ministro do Interior, Mário Andreazza, que era preparado para ser o presidente civil dos militares. Na mesma década, encontrei com Marcinho VP, 17 anos, e um fuzil AR-15 niquelado que batia na altura do peito dele, numa viela da Nova Brasília, no Complexo do Alemão. No final dos ano 80, fui o primeiro repórter do Rio a viver por uma semana na Favela da Rocinha, onde eu, o fotógrafo Alcyr Cavalcanti, e o motorista Osmar Sombra, escapamos de morrer no meio de um fogo cruzado entre traficantes e bicheiros.

Desde o início do trabalho de repórter não me lembro de ter entrado numa favela sem ter que passar pela associação de moradores. Era de praxe. Ia lá puxar assunto com alguém, mesmo que o objetivo fosse tentar entrevistar o dono do morro. Só voltei a cobrir favelas durante a Operação Rio, em 94, mas o clima era tenso, e não lembro de militares transmitindo a menor sensação de segurança.

Ontem, terça-feira, dia 30 de novembro de 2010, vivi uma situação que não via há decadas. Vestindo calça jeans, camisa social, e levando minha pasta onde transporto minha UPJD (Unidade Portátil de Jornalismo Digital), entrei sozinho numa favela do Rio sem ter que dar satisfação para ninguém. Não estava em carro de reportagem nem usava o crachá. Passei tranquilamente pelas escolas municipais Assis Chateaubriand e Mário de Andrade, na entrada da favela. Fotografei a pichação, num beco: "ADA, bala nos pés pretos" (o nome de uma facção, sugerindo chumbo na PM). Mais adiante havia uma tropa de PMs perfilada. Era a inauguração da 13a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), do Morro dos Macacos, em Vila Isabel. A favela ficou marcada por que esteve envolvida nos conflitos que terminaram com um helicóptero da PM abatido por traficantes, deixando três policiais mortos. Um lugar marcado pela antiga política de confrontos, que resultou em tragédias como a morte de Alana Ezequiel, de 13 anos, em março de 2007, já no início desse governo.

Felizmente a política de confrontos do governo do estado foi substituída pela política da pacificação, do policiamento comunitário, ou de proximidade, como prefere o secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri. Ontem, vi com meus próprios olhos o que os jornais contam. Gente sorrindo, religiosos agradecendo a Deus pelo "milagre", crianças brincando na piscina que era dos traficantes e agora será reformada e devolvida a toda a comunidade, como prometeu ontem o governador Sérgio Cabral.

Enquanto ouvia o discurso do governador, pelo alto falante, fui adentrando a favela, sob os olhares curiosos de alguns moradores. Dava pra notar que eu não era da área. Estava munido da minha handycam procurando algum personagem. Preferi não gravar com ninguém, não forçar ninguém a falar sobre algo tão novo que muitos deles ainda sequer compreendem. Mas percebi, apesar da presença de alguns políticos no palanque, que trata-se de uma revolução social, o que está acontecendo em algumas favelas. O tráfico nunca vai acabar enquanto houver usuários de drogas, mas o secretário Beltrame encontrou o tom correto do discurso: é preciso retomar o território.
A inauguração de uma UPP me lembrou muito aquelas cerimônias de Odorico Paraguassu, com padre, banda e tudo. Tem a banda da PM, policiais perfilados, oficiais de alta patente, cheios de estrelas e gemas por todo o uniforme, um forte esquema de segurança com guarda-costas ágeis e fortes, além de carros oficiais, alguns blindados. Tem até um sujeito oferecendo gratuitamente água filtrada e gelada num galão - é o aguadeiro da Cedae. Cabral brincava com todos, principalmente crianças. Estava igual pinto no lixo.
Mas no meio de todo esse barulho, que tem a finalidade de combater o crime, pela primeira vez senti um momento de alívio, senti que dá para se ter esperança de alguma mudança. Sem dúvida que será um trabalho árduo, mas seria muito bom ver toda a sociedade participando disso de alguma forma. Ontem infelizmente não ouvi ninguém, exceto um gari que não mora na favela, não quis dar palpite sobre o que os moradores pensam, mas entende a perplexidade de muitos moradores e até mesmo de jovens do tráfico que ainda devem estar por lá.
- Aconteceu de repente. É como se você acordasse e visse que tinha ganho na megasena. Da noite pro dia. O cara não acredita. Fica completamente zonzo - contou o gari.

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